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quarta-feira, 11 de maio de 2011

Pensamento sem imagem - São Paulo por Daniel Lins

Para termos dois textos curtos, um sobre São Paulo, outro sobre Paris. Começamos por São Paulo. Eis o prometido depoimento do filósofo, sociólogo e escritor Daniel Lins.  

Daniel,  gostaria que comentasse uma frase que tirei da mídia: "São Paulo é uma das cidades mais feias do mundo, sobretudo quando a gente a olha de  cima e vê sua enorme periferia".  

Daniel Lins - Pois é, a caricatura é ainda mais forte que a opinião. Duas coisas eu vejo nessa frase . Primeiro, sobre a afirmação "a mais feia do mundo"... Do mundo? Esse imaginário social que repete isso  assina o DNA da medicoridade. Se se fala do mundo, não se está falando de nada. É uma afirmação que nega. Segundo, para falar que São Paulo é feia teria que começar sobre o que é feio. Se é feio a partir do preconceito ou se é partir do modelo.  Os livros do Umberto Eco,  inclusive publicados no Brasil, já acabaram com isso de uma vez por todas.  


A idéia de feio é antes pensada que ressentida.  Quem decide o que é belo ou o que é feio? É o discurso oficial. Na época de Renoir, o que era feio? A mulher feia era a magra, a bonita era a gorda com carne balançando por todos os lados.

Amo São Paulo e acho a cidade muito bonita, inclusive a sua periferia. Alguns bairros  eu conheço, outros nem tanto porque passei muito tempo sem vir aqui, mas posso dizer que até naqueles que não conheço a gente sempre pode  encontrar um lugar para comer,  um pão na chapa, um café, conversar com as pessoas e receber o sorriso até de quem vive com imensas dificuldades. Por que é feio? Porque é pobre? Porque não tem árvores?  Porque a pobreza da periferia assusta? sobretudo aqueles que não a conhecem.
Gosto de tudo em São Paulo. Do Braz, da Mooca. Claro que para falar da beleza de São Paulo, o mais fácil seria começar por Pinheiros ou pela Vila Madalena ou pela avenida Paulista. Incrível uma avenida dessas, de repente um bosque...

O mais pobre dessa história de que "São Paulo é a cidade mais feia do mundo" é a generalização. Afirmar sem pesquisar, é jogado assim... Fico perplexo com isso porque o feio é mais uma criação ideológica do que estética. O que é feio para a gente pode não ser para os habitantes da Índia.  Muitos estrangeiros brancos, daqueles quase róseos,  com 1,90 metros de altura, ficam loucos com as  morenas, as pequenas, as negras no Brasil. Mas nós não podemos achá-las bonitas, a não ser que passe na Globo e como faz muito pouco tempo que a TV brasileira vem se abrindo para os negros, a gente está proibido de gostar. É o imaginário de uma elite brasileira que não supera a burrice estética. Estamos num país de apartação, apartação do negro e, sobretudo, do pobre. Então, o feio é sempre o outro: o pobre, o negro, o índio. No Brasil, gosta-se do que já morreu, são os que adoram os cemitérios... Todo mundo gosta dos índios. Eles foram praticamente dizimados, então todo mundo gosta. Mas, quando eles aparecem, os guardamos nas reservas, espécie de zoológico. 

O feio e o bonito é pensado na história da filosofia desde Platão. Venho pesquisando isso com muito interesse. Em Aguas Belas - Alcoolismo, Filosofia e Literatura (livro no prelo), falo da beleza do alcóolatra. Por que o jovem Lautréamont pode ver como belo as mãos trêmulas do alcóolatra? Porque ele tem o olhar do índio, ou seja, o olhar que não parte de uma imagem anterior, ele a inventa, é o pensamento sem imagem. Feio, portanto, pode ser não saber pensar.

Um comentário:

  1. Marta, São Paulo é para mim uma belez que flui, escapa, transmuta: não é espelho nem canto de sereia. Devires entre mutantes paisagens. Abraços com carinho; Jorge

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