Tradução

Dylan, hippies, beatnik - por Daniel Lins


Dylan, hippies, beatnik
(Fragmentos de um livro por vir)
                            Daniel Lins

Confesso que depois de passar oito dias no alto Sertão, na região do Cariri, no Ceará, numa vila perdida, no fim do mundo, cercada por dois açudes que agora, graças as fortes chuvas, estão a sangrar, o retorno ao concreto armado e ao estresse da grande cidade não me parece evidente. Mas, vamos lá. Esta conversar virtual com Bob Dylan é meu oásis, ao invés de falar sobre ele, é minha linha de suspensão. Meu Sertão.

         Em conversa recente com um amigo, ele parecia bastante surpreso, mais que surpreso, digamos, com o fato de eu ter feito alusão a Bob Dylan, falando de paz, liberdade e amor. Meu amigo fez de imediato uma analogia com um estilo hippie de Dylan, “alheio a esse movimento”. Seu estranhamento me instigou a ir mais longe em minhas conversações virtuais com Bob. Ao afirmar que não aderiu ao movimento, Bob parece acreditar que esta declaração apagaria sua real importância no movimento hippie, apesar dele – talvez?
        
Como eu, milhões de jovens chegaram ao movimento hippie graças ao gênio de Dylan, em diversas platôs de sua atuação. Poeta engajado, numa curta fase, cantor engajado, e defensor explícito dos oprimidos, numa mais curta fase ainda; compositor, cineasta às horas vagas, amante de muitos amores, nem sempre fáceis, defensor da natureza e da paz, rebelde com ou sem causa, sonhador das errâncias e países perdidos, Dylan foi certamente uma fonte não negligenciável de simpatia e adesão ao movimento hippie no ocidente.
        
         De fato, vou partilhar esta conversa em dois momentos. O primeiro é a relação Dylan/hippies, na aspiração primordial e marcante com o movimento da Beat Generation. Dylan e os hippies, neste encontro virtual de escolhas, atestam na autonomia e na liberdade, não uma dívida nem uma origem, mas uma intensidade nômade: ambos se deixaram contaminar pelos beatnik. Um ponto em comum. E não é pouco.
        
Em próximo diálogo, que seguira em breve, a gente vai conversar explicitamente sobre os hippies e Dylan. Influências, “coincidências”, escolhas etc. Claro, não esqueci os dadaístas… voltarei ao assunto, no devido momento, mas em outra ocasião.

As aspirações dos hippies – e de Bob Dylan, embora de modo peculiar – são herdadas dos escritores da Beat Generation, considerados muitas vezes como precursores do movimento, pois eles também são a expressão primeira da ruptura com a sociedade de massa. Uma vida cool, feita de sexo, música, militância, para alguns, e estrada – Pé na estrada.        Uma evasão fora da América pós-nuclear (após 1945), consumidora “bien pensante”, principalmente sob a influência do Jazz e do movimento surrealista, cujos membros encontram refúgio em Nova Iorque, durante a guerra. Aluno de Alan Watts, introdutor do pensamento oriental em São Francisco, na Califórnia, Gary Snyder, acompanhado por Jacques Kérouac, e mais tarde Ginsberg vão popularizar a prática da meditação, e de modo geral do Tao e do Zen-budismo. Aproximação que, ao invés de congelar os corpos e desejos, abriram para o infinito da carne, da droga e dos encontros errantes, navegantes. Dos caminhos da Califórnia, às montanhas do Nepal e aos vales próximos de Kathmandu, o mundo parecia está sendo refeito, reinventado, sob o signo de uma est-ética do efêmero, marcada por uma vontade de potencia preguiçosa e doce como o sorriso das crianças de Goa, no sul na Índia.

Beat é uma gíria oriunda do Jazz, o termo tem no mínimo três conotações, significa “perdido” “esgotado”, “exausto”, tomado por um cansaço do mesmo, e designa um estado, uma sensibilidade marginal – alguém que vive à margem de –, mas também uma maneira de beatitude, àquela do monge budista itinerante, aberto para uma outra percepção/recepção do mundo.
        
O movimento nasce em torno de escritores nova-iorquinos (William Burroughs, Jacques Kérouac, Allen Ginsberg) que, fascinados por marginais-viajantes (Neal Cassady, Gregory Corso, Bob Kaufman), e todos os tipos de viagem – travessia do continente americano, “trips” da droga, viagens iniciáticas, viagens amorosas, sexuais etc. – vão a São Francisco e fazem da livraria de Lawrence Ferlinghetti o lugar em que recitam em público suas inovações poéticas (Howl, por Ginsberg, em 1956) e onde editam suas obras (Pé na estrada, 1957, de Kérouac). Múltiplos caminhos, pois, de prazer com o diferente diluído, não raro, às entrelinhas do amor ao mesmo e seus oceanos de diferença e repetição.
        
Escrita espontânea, atenta ao ritmo, a prosódia beat se reclama de Antonin Artaud, Rimbaud, Blake e quer reatar com as fontes vivas da tradição americana, revisitando-as, divulgando-os sob outras intensidades e paixões (Whitman, Lindsay, Sandburg). Dylan não esquecerá, em sua prática musical, a metodologia beat de um passado revisto, nunca uma nostalgia patriota, tão pouco um “resgate” amargurado, antes uma poética da saudade do futuro…

Muito mais que uma escrita e uma linguagem, a beat generation é, sobremaneira, um modo de vida contestatário – recusa da sociedade de consumo e da classe média que ela gera –, uma revolta que convoca e instiga à busca de outros espaços (Índia, África etc), de outras experiências (Budismo, zen-budismo) em que se apagaria a miséria inicial, a imagem de uma América recolhida em si mesma. Uma América caracol! Uma América desidratada, cloroformizada em seu próprio umbigo…

         Por que Kérouac não aceitava ser considerado o precursor do movimento hippie? E por que Dylan, anos depois, não se identificava com o movimento?

         Na minha opinião, e apesar de toda a influência visível da Beat Generation, historicamente confirmada, donde o esboço supra apresentado, Kérouac ao contrário dos hippies não pretendia mudar o mundo, não havia nenhum messianismo em sua escrita e em seu modo de viver. Amante do álcool, sobremodo, ela curtia, como as abelhas curtem o mel, as alegrias ternas, amargas, do líquido mágico, do álcool, sua escrita liquescente atentando antes uma antiutopia que uma utopia. Antes para uma eclosão que para o discurso repetitivo, do mesmo para o mesmo, sem abertura para às margens, para o abismo de diferenças inserida no mesmo.

Kérouac sabia que a Beat Generation não era o último movimento, logo não poderia se transformar numa utopia. Mas, o que é a utopia? No começo, é um não lugar. É o que não se sabe nem se conhece ainda. Pouco a pouco, tende a se tornar uma espécie de devir idealizado, logo um movimento em si frágil, por que ainda identitário, territorializado. Um espaço quase sempre generoso, mas que toma, à medida que deixa de ser um movimento minoritário, um aspecto autoritário, hierárquico. Um controle suave, mas controle, apesar de tudo. A microsociedade de controle traz consigo a recusa do novo, daquilo que está por vir. A utopia se torna, então, uma concha, corpo/alma retraída, protegida por uma couraça que impede a respiração, ou a chegada de possíveis: são os mesmos dizendo a mesma coisa para os mesmos. O fim imaginação. Tijoladas no coração do perspectivismo, sempre curioso, sempre criança.

Neste contexto, a degeneração não demora a poluir os espíritos. Um sopro, uma novidade, um pensamento-outro; assim, basta uma opinião contrária à maioria, e a crise pinta… É a debandada… É o “Salve Quem Poder (A vida)”, 1980, título memorial do filme de Jean-Luc-Godard.

O filme de Federico Fellini chamado “Roma de Fellini.”, 1972, hoje um cult da história do cinema, é um belo exemplo, no presente contexto.

Temos aqui arquitetada a problemática da utopia e da antiutopia, de modo extraordinário. Há uma cena em que engenheiros, arqueólogos, mestres e especialistas em obras de arte, operários e técnicos em construção de metrô vivem uma grande emoção, um verdadeiro acontecimento. Enquanto escavam às ruas de Roma para a construção do metrô, descobrem um palácio nos subterrâneos, abandonado há alguns séculos. Espantados, surpresos, os operários ao ver lacrada a galeria principal, que abre para o palácio, tentam entrar e abrir a imensa porta. Eles conseguem. Ao penetrar no salão descobrem que se trata de uma galeria de arte antiga. Numa cena próxima do delírio, começam a gritar, ao mesmo tempo em que anunciam a boa notícia. De repente, o horror! A medida que o vento entra, que o ar toma conta da magnífica galeria, o contato da vida, do sopro, do novo com os afrescos fazem-lo desaparecer. Pouco a pouco os afrescos dão lugar a uma parede amarelada, vazia. Certamente, uma das mais belas e duras cenas filmadas por Fellini. Uma obra-prima da ética e estética da crueldade.

Hermeticamente fechado, há séculos, a utopia, em sua mesmice, um mesmo sem diferença, sem o ar, sem o novo, sem o contágio, à chegada da vitalidade, da diferença que difere, daquilo que não se conhece ainda, tudo morre. Os afrescos, como os seres utópicos, protegidos em suas verdades e modo de viver, fora de tudo e todos, enclausurados numa beleza de ruínas, não suportaram a selvagem energia da antiutopia nutrida com a força da vitalidade e o desejo permanente de arte. A arte para nos salvar da verdade, de nossa verdade?

O desenho de um movimento aberto é subitamente lacrado, tornando-se cemitério. É neste contexto que pode surgir a antiutopia. Sempre minoritária. Sempre querendo aprender. Sempre à busca do novo. Novos sopros, novas energias. À escuta do que está por vir. Era nessa antiutopia que, em meu ponto de vista, Kérouac se situava, malgrado todas as suas ambiguidades. Humano, demasiado humano. Ele enaltecia o aspecto introspectivo do ser humano pela viagem corporal ou incorporal, o prazer de viver o momento presente, o agir e não o reagir: a reação em si é conservadora, lamuriante… O desafeto cristão: “ah se eu tivesse reagido de outro modo”, sempre em reação, como as carpideiras gregas ou as belas e virtuosas almas de Sade! Justina?

Por outro lado, Kérouac não queria ser assimilado à classe média americana, escrava do consumismo e, como Ginsberg ou Burroughs, ele deseja experimentar o sabor dos interditos, das drogas, do sexo, em todas as suas dimensões, do prazer e do gozo libertos do pensamento único ou do sexo reprodutivo. Não por acaso, sua bissexualidade, seu amor ao mesmo, não constitui para ele um problema, embora mantivesse uma postura discreta a respeito de sua mitologia amorosa privada. O sem sexo. O sexo voltado para os desejos e prazeres, sem projeto reprodutivo. Sem Édipo. O sexo para nada, inútil… o sexo somente para ser feliz!

Logo, não há em Kérouac, nem exemplo, nem lição, nem desejo de mudar o mundo. O mundo se transforma, ou não, por si mesmo, num si mesmo que somos todos, que não precisa de líder menos ainda de palavra de ordem. A educação, a cultura, a arte, a ética, a coragem de dizer SIM ou NÃO, o reconhecimento, mas não o amor (sempre piegas) são mais fortes que a idealização de um mundo governado por uma miríade de opiniões, e personagens macabros, enfermos do poder, sempre em guerra contra o pensamento, contra o desejo, contra as sexualidades órfãs.

         Cabe, porém, observar que a ausência de palavra de ordem não equivale a dizer que a Beat Generation, que influenciou de modo singular Bob Dylan, não tinha uma filosofia de vida. Tinha, e como! Movimento literário ímpar, para além da literatura, e com a literatura, soube cuidar da est/ética e perceber a vitalidade da invenção, quando ela se passa do juízo. Juízo aqui como julgamento e desrazão. As regras, como diz Georges Bataille, foram feita para ser transgredidas. Sem transgressão não há renovação, todavia, ditadura das regras. Salvo, as regras da arte cuja força maior é se passar das regras duradoras e evitar que se tornem hábitos, cacoete, sociedade de controle.

Ora, desrespeitar uma regra não é uma reação, mas um agir inventivo. Nunca se tratou para os beatnik, e mesmo para Dylan, de eliminar as regras. Trata-se antes de não se deixar sufocar pelas regras, enquanto calistenia militar, dogma, ou doxa, mas fazer das regras um artefato de vida e não de morte da imaginação, da educação e da arte. Como operar a transvalorização da regra? A regra é como a imagem, a ideia, ou o pensamento, precisa sempre se renovar, crescer, se deixar contaminar por outras regras oriundas de um saber da inteligência que demanda sempre a ser transmutado. Um saber que não se renova é como uma regra que se autodefine como divina, todo-poderosa. As grandes ditaduras e sistemas sanguinários sempre fizeram a apologia da regra… para os outros, claro!
        
No âmbito da Beat Generation, Burroughs, Ginsberg, Kérouac, e mais recentemente Bob Dylan, perceberam cada um, segundo sua singularidade, a importância da regra, em tempos de democracia, mas não caíram na armadilha da divinização da regra, pois ela não está acima da liberdade e da autonomia. A regra é da ordem do movimento, da invenção, e não perenidade. A regra não pode camuflar o autoritarismo e a carência de cultura, de conhecimento e de liberdade. É um suporte efêmero, limitado no tempo, que cresce com a sociedade, numa positividade sem retórica da enganação, e que acompanha as transformações próprias às invenções humanas. Não é Totem e Tabu.

Como toda antiutopia, o movimento beat defendia suas causas, não para impor um sistema ou uma ordem política, conquanto, para fazer da vida, do aqui, do agora, do já, do hoje que é amanhã, e de um ontem que é o futuro, um devir, força positiva por excelência. Uma saudade do futuro.

Não se tratava apenas de um “retorno às coisas simples da vida”, porém, de fazer da vida uma bela arte, com todos os perigos que a beleza e a arte implicam. Não há invenção sem violência nem estética sem crueldade. O amor à ecologia, a defesa da harmonia do mundo, dos mares, do cosmos, do caosmos, isto é, do ocidente curado da dualidade Homem/Natureza, não era um projeto político de poder, todavia, de vida. Era um estilo de vida que aspirava à liberdade, a autonomia, e que os beatnik queriam expressar, não representar, nem falar em nome de… Tudo no movimento Beat, como em Dylan, personagem-conceito, é uma questão de expressão, alheia, pois, a significação, a representação, a gramática da realeza!

O que é a expressão? No contexto dos beatnik e de Dylan, afirmo sem hesitar que a expressão é a ação pela qual se espreme o suco de uma planta, uma fruta ou de certas coisas pela pressão. Apertar com força, espremer, retratar, exprimir, dizer, expor, anunciar claramente. A expressão é a manifestação do pensamento não domado por meio da palavra, pelo gesto ou pela digitação. É o modo como o rosto, a voz e/ou o gesto denotam um estado emocional. A expressão é vivacidade, animação, energia.

         Que Kérouac não tenha querido se identificar com os hippies, era seu direito. Mas isso nada muda à liberdade dos hippies de terem bebido de seu leite e seguir, em muitos aspectos, os escritos e a vida do andarilho, ora territorializado, ora desterritorializado, amante dos desafios: “Viver é correr perigo”, poderia ser a máxima de Kérouac. Mas, ele não amava as máximas!!!

         E o que dizer de Dylan, em relação a sua não adesão ao movimento hippies? A aproximação dos hippies com Bob Dylan é tão profunda, embora não se possa dizer a mesma coisa de Dylan, como cidadão que opina, suas canções, suas atitudes, seu agir, seu amor à natureza, sua interação com as coisas simples da vida. Dylan estaria condenado aos hippies? Não teria ele parido um filho por trás? Um monstro? Se é verdade que essa relação acontece, sobremodo nos anos 1960, sou levado a extrapolar e a superar esse calendário, como veremos no próximo papo.